domingo, 25 de março de 2018

Foto de Elena Valsecchi Art.E.
Tela de Elena Valsecchi
Numa corda bamba de sentimentos

com cheiro a pele suada de amores

num deslizar suave por tanto querer

por tanto amar

no querer escorregar mesmo sabendo que pode não haver rede.

Vem a vida e diz que sim,


que só assim saberás o que te espera

depois da espera

depois da queda


depois do fim.


E atiras-te


e deixas-te voar


e continuas a amar.


E cais


e continuas a sonhar.



~In Na Minha Pele, 2016~

quinta-feira, 22 de março de 2018

Tela de Armanda Alves
Passavam por mim, acotovelavam-se no querer chegar a lado nenhum, que era esse o único lugar onde estavam todos os que não se queriam ver.
Alguns olhares vagos, outros vazios de desejo, de querer. A única coisa que queriam era chegar, apenas chegar.
As garrafas já vazias iam marcando territórios, assinalavam o caminho para lado nenhum, para o sítio de um êxtase sem sabor, sem desejo, sem paixão. E continuavam a marcha, uns atrás dos outros, que alguém havia de saber o caminho.
Era assim que passavam a noite, de olhares vagos, corpos flácidos, ombros descaídos, seguindo garrafas vazias, sempre em busca do tal caminho para lugar nenhum.

Era assim que se transformava a cidade, numa noite de busca de paixões inexistentes no fundo de garrafas vazias, como vazias se tinham tornado as suas vidas.
A cidade está cinzenta, chuvosa, triste como as almas que nela vagueiam.
O frio entranha-se em cada pedra, em cada passo dado sem destino. Clama por calmaria, pede que a deixem reviver a Primavera dos passos suaves de pessoas com sorrisos de flores e cores, muitas cores.
A cidade não dorme, a cidade já não é o destino. Espera por novos cheiros, novas vidas.

A cidade perdeu a cor, mas sabe de cor o seu reviver.

quarta-feira, 21 de março de 2018

Foto de Elena Valsecchi Art.E.
Tela de Elena Valsecchi
Manhãs nubladas
dias de equinócios
dias de comemorar certos vómitos
em entardeceres gélidos
em anoiteceres estéreis.
Saio na ânsia de uma árvore e vou,
numa metáfora batida
num pleonasmo inconsistente
redundante
desnecessário.
E volto,
ao sabor de uma missão cumprida
que nunca o será.
E penso,
que sempre será assim
que tudo o que se faça nunca passará de metáforas
e sempre haverão pleonasmos
a redimir almas redundantes,
insípidas
inodoras
incolores.

terça-feira, 20 de março de 2018

Aos passantes que por aqui se demoram à volta do que escrevo, deixo um convite.


segunda-feira, 19 de março de 2018

No brilho das águas mansas
revi a doçura do teu olhar
como se fosse a primeira vez

como se nunca tivesse visto brilhar assim.
Foto de Naná Rebelo.
Fotografia - Naná Rebelo

Gosto de me sentir diluir na mansidão da água
de perceber nela os contornos do meu corpo
da certeza que só ela me dá
de poder mergulhar

no teu olhar.
Foto de Carlos Saramago - Artista plástico.
Desenho de Carlos Saramago
Diz que já viveu outras vidas,
todas suas.
Diz que já morreu outras mortes,
não se lembra.
Nem das vidas, nem das mortes,
apenas as pressentiu num arrepio,
num sonho ou talvez apenas no esvoaçar de algum pássaro da noite.
Olhando-se num espelho
reviu-se noutros corpos,
todos seus,
que eram seus aqueles olhos.
Falaram-lhe os reflexos de si,
disseram-lhe que se fosse para trás do espelho
que era ali que tinha de se reencontrar,
era ali, e só ali, que se iria reconhecer.
E foi, mas não foi a si que encontrou.
Ali só encontrou o vazio deixado por todas as mortes que já morrera,
ali não havia mais nada senão as memórias de outras vidas
e essas já não falavam,
já não olhavam.
Estavam mortas.
Todas.

Irremediavelmente mortas.

sábado, 17 de março de 2018

Arte: Carlos Saramago
Tela de Carlos Saramago
Vai e que te sejam suaves os passos e as pedras do caminho
Vai-te de mim, que já te foste
Que me deixaste no limbo de sonhos mal sonhados
No sítio de ninguém
No fumo enrolado entre os cigarros fumados p'la metade.
Por aqui me fico na espera de um cigarro fumado até ao fim
Na espera de sonhos que já não sejam
Na espera de uma outra maré, que as marés voltam sempre,
Mas não à tua espera
Já não.
Da mulher que sou volto à mulher que fui
Mais forte, mais plena, mais eu.
Que em mim se erga uma montanha
Que da montanha cresçam árvores
Que das árvores nasçam frutos proibidos
Que aos frutos ninguém lhes toque, que serão meus,
Só meus.
Que as minhas raízes não parem de crescer
Se enrosquem, que estrangulem
E vivam

Que vivam sempre para além de mim.

sexta-feira, 16 de março de 2018

Foto de Sarapintar.
Tela de Sara Pestana
Engole a tristeza a sangue frio
e espera arrotá-la no cimo de uma falésia perdida em sítio nenhum.
Vai gritando vómitos de fel
vai sozinha que há dores que se querem sós.
Há redemoinhos de angústias nos porquês da vida
nos porquês dos dias feitos de azias
nos dias feitos de pedras
nos dias feitos de nada.
E chega-se à falésia e engole os ecos dos gritos que não gritou
e olha em volta do nada que há p'ra ver
do nada em que se tornou
e espera.
Espera que se desfaçam os ecos e as azias e as pedras
e espera poder gritar de vez

a voz.

quarta-feira, 14 de março de 2018

Foto de Armanda Alves.
Tela de Armanda Alves
Desenhas-me o corpo numa carícia de cores.
vais percorrendo uma paleta de tons intermináveis.
irrepetíveis.
A cada pincelada vou ganhando vida
consigo respirar
sinto cada vez mais cores
arco-íris de sentidos
bandos de asas a poder voar.
E ficam
que é ali que cessam todas as chuvas do mundo
e brilham
as cores
e as asas de um desejo cada vez maior.
Sonho as cores que vamos misturando,
sonho os momentos de alquimia,
de pura magia.
E assim vou,
num prisma enlouquecido
num turbilhão de luz,
num turbilhão de amar
em tons pastel.


In Na Minha Pele, 2016
Foto de Naná Rebelo Detox.
- Ouvi falar de um corvo que se recusou a cantar.
- Mas os corvos não cantam! Quanto muito soltam uns "crás" que resultam numa cacofonia lúgubre.
- Dizes tu. Eu já ouvi um corvo a cantar e foi tão bonito ouvi-lo... era de noite, havia luar. Um luar tão brilhante que mesmo o seu negro, o do corvo, cintilava por entre as árvores.
- Um corvo a cantar ao luar... só podia. Lá vens tu com os teu romantismos cansativos. Deixa-te disso!
- É por isso que os cor
vos já não cantam...
Tela de Jorge Rebelo
Escrevo com os olhos
com a boca
com a alma.
Escrevo em cada passo que dou
a cada compasso de uma música qualquer.
Desenho-te um olhar já baço
de tão brilhante que já foi.
Desenho as linhas da minha mão
como as vi um dia
cruzando as tuas
como as imaginei sempre ali
volteando e tocando-se numa valsa lenta
numa valsa que só elas sabiam.
E assim vou
continuando a escrever-me
a desenhar as linhas da minha mão
agora cruzando-se entre si
dançando sempre ao sabor de outras valsas
ao sabor do tempo que lhes resta
ao sabor do viver e reviver de uma vida só delas.
E escrevo-me
e danço-me
e vivo-me
até que os dias se acabem e que as noites se comecem

até que se embacem os meus olhos do tanto que já brilharam.

sábado, 10 de março de 2018

Fotografia - Naná Rebelo
Enrosca-se a mim, o meu gato preto, tão preto.
Devolve-me alguma lucidez,
só alguma,
quando me olha com aqueles olhos de esmeralda
e me aquieta de todas as angústias.
Sim, gostava de ser como ele,
de lhe poder devolver toda a quietude que me oferece
sem pedir nada em troca.
E aninho-me com ele,
a única forma que tenho de lhe retribuir a paz que me dá,
quando me vela o sono

e os sonhos.
Foto de Naná Rebelo Detox.
Fotografia - Naná rebelo
Tinha-lhe dito que iria vê-la, quando o sol se pusesse. Que o esperasse, ali à beira-ria.
Ela foi e esperou-o. Tinha sido ali que tinham dado o primeiro beijo, tinha sido ali que se amaram pela primeira vez, tinha sido ali que fizeram juras de amor.
E ela foi revendo todos os momentos e de cada um bebendo recordações. Estavam-lhe todas entranhadas na pele, em cada batida do seu coração.
Foi espera
ndo, e o sol a pôr-se, e ele a tardar.
E a pele começou a secar, o coração a bater forte e as recordações, essas, não passarão disso. Recordações.
Tinha frio por dentro, a alma gelava e ela foi-se embora, que o coração também já esfriara.
Ele não foi, ela não lhe perdoaria, que o coração de uma mulher não se fere sem consequências.
Um dia seria ele a esperar, e seria por ela.

O banco, esse, estaria sempre ali, testemunha de amores e desamores.

quinta-feira, 8 de março de 2018

Tela de Armanda Alves - Mãe Terra

O que é ser Mulher?

Ser Mulher é ser Mundo, é ser Terra, Ar, Fogo e Água.
Ser Mulher é ter em si as 4 estações.
Ser Mulher é ter em si um pedaço de Gaia,
e de cada pedaço seu se faz a Natureza, se faz o todo.
Mulher é águia, é loba, é leoa.
Ser Mulher é ser Vida, é gerá-la, é pari-la.
Ser Mulher é ser amor, doçura, beleza,
toda a beleza do mundo.
Mas ser Mulher também é ser dor, ser luta,
é ser guerreira, é nunca desistir.

Ser Mulher é vencer.

Mas ser Mulher também é sedução,
que Mulher é feiticeira.
Ser Mulher também é ser frágil
mas atentem e temam-na,
que a Natureza nunca perde.
A Mulher quer-se amada, cantada, mimada,
e dela terão tudo,
dela já tiveram tudo quando vos carregou no ventre,
quando rasgou as entranhas para vos dar à vida,
quando vos deu de si a sua seiva, quando vos amou até depois do fim
Uma Mulher nunca terá fim

será sempre A Mulher.

quarta-feira, 7 de março de 2018


Foto de Galeria Beltrão Coelho.
Tela de Elena Valsecchi
Diz-que que a poesia nasce da tristeza
que só da tristeza nascem poetas
que só do amor
que só da paixão
que só da dor.
Que da alegria não rezam as poesias
não são para aqui chamadas
não são aqui amadas
nem tão pouco aqui cantadas.
O poeta quer-se triste
como triste é o acordar num dia de chuva.
Nos seus versos não se dizem banalidades
de vidas ensolaradas
nem se pintam as cores do arco-íris.
Não se pintam sóis de caras sorridentes
não se querem a estragar tristezas
não se querem a iluminar corações sem dor.
Odeio a poesia
odeio os poetas.

terça-feira, 6 de março de 2018


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Silêncio,
só ouço silêncio e todo o seu barulho
que me ensurdece.
De repente tudo me fala e deixo de ouvir
como se tivesse ficado parada no tempo das correntes do mar,
dos rios, da sombra das árvores, dos ninhos dos pássaros.
E continua o barulho do silêncio
que é só ele que consigo ouvir
é só do meu dentro que me chegam murmúrios
que me sibilam verdades cruas aos sentidos que me restam.
Não as quero, essas verdades
quero as mentiras que me fazem acreditar no dia em vou poder ouvir o bater das asas de uma borboleta, o zumbido de uma flor.
Nesse dia vou ter força para calar o silêncio.
Nesse dia vou poder ouvir,
a Vida.

segunda-feira, 5 de março de 2018

Salvador Dali
Salvador Dali

Quando eu morrer não me venham com elogios fúnebres
que desses não vai rezar a história.
Quando eu morrer festejem a minha vida
que da morte pouco haverá a festejar.
Quando eu morrer não me levem flores
que essas nascem e crescem no meio da vida e não merecem lágrimas mal choradas.

Quando eu morrer não me chorem
não contratem carpideiras
não inventem qualidades que já não são e nunca foram.
Quando eu morrer só morrerei quando as memórias de mim se esvaírem dos que ficarem.

E se eu morrer assim, então estarei definitivamente morta.

Um dia vou querer não ter de me despedir de ninguém
vou querer guardar todos os momentos
vou querer guardar todos os cheiros
todas as cores
todos os sabores.
Um dia, não me vou despedir
vou apenas continuar um caminho por acabar
vou seguir todos os sóis e todas as luas
todos os mares
todas as marés.
Um dia, apenas vou
e nesse dia vou recordar todos os caminhos por fazer.

sábado, 3 de março de 2018

Desenho, Naná Rebelo

Desencaracolei-me de um corpo seco de amor,
espreguicei os sentidos, soltei emoções torpes, incapazes, obsoletas, deixei-as ir.
De mim só quero que fique a frieza, o gelo discernente do que importa, do que consegue ver em águas turvas.
Da opacidade da vida que só saiam os raios de luz que realmente importam, os que deixam ver apenas aquilo que é importante, aquilo que realmente interessa para cegar de vez os que pensam que já viram tudo.
Que o sonho não seja mais do que isso, sonho, que se desfaçam de vez os moinhos de vento e a sua estúpida pretenção de que fazem mover o vento....
Não quero mais Quixotes, não quero mais poemas de amar e desamar, não quero mais ilusões nem esperanças vãs.
Não quero mais promessas apocalípticas.
Quero a verdade, quero ser agora e ser amanhã.
Não quero passados, nem angústias, nem lágrimas já secas.
Não quero ser eu, quero a outra que se esconde em mim,
quero a surpresa, sem promessas.


In, Na Minha Pele, 2016

Blue Violinist, 1947, Marc (Moishe Shagal) Chagall (1887 - 1985), Russian.  Chagall <3                                                                                                                                                                                 Mais
Marc Chagall & Le Violiniste Bleu

Olhei aquele quadro e gravei-o na memória.
Era belo, tinha um rosto belo de olhos rasgados
e o sorriso mais doce que alguma vez vi.
Olhava para mim, como se soubesse que eu estava ali
a olhar para ele, para o seu rosto, para os seus olhos, para o seu sorriso doce.
Perturbou-me aquela troca impossível, mas ficámos ali, a olhar um para o outro e falámos, sim falámos numa linguagem só nossa.
Era a linguagem do sonho, de quem se busca e finalmente se encontra numa qualquer dimensão intangível.
Disse-me, és tão bonita, porque choras?
Porque finalmente te encontrei e não te consigo abraçar...
Já o fizeste, não te inquietes, senti o teu abraço assim que senti o teu olhar.
Sim, estou aqui, só para ti, sempre que me quiseres.
Mas eu quero-te sempre...
Eu sei, por isso estarei sempre aqui, para ti.
Mas estás preso nessa moldura, não podes sair daí.
Sairei, se me deixares, se me levares, se o teu sonho nunca acordar.
E se acordar?
Não o farás, por mim.


Quase, estou quase a chegar aonde me chama a noite,
aonde me cantam os sonhos e me embala o sentir quase dormente.
Na noite e com ela, tenho diálogos esquizofrénicos.
É da sua voz que ouço todas as outras vozes que me acompanham de dia, que de dia não as consigo ouvir.
De noite tudo fica mais claro, todos os códigos são finalmente decifrados e me transportam ao mundo da lucidez,
que de dia não são mais do que ruídos difusos onde todas as vozes se misturam num aglomerado de pensamentos oblíquos,
desenquadrados, desfigurados, inúteis.
Sim, é para lá que vou, que só lá sinto a verdade do ser,
clara, confortante, aconchegante, sem o lixo da mentira dos dias.

quinta-feira, 1 de março de 2018


Foto de Sandra Ventura Fotografia.
Fotografia - Sandra Ventura
Venha, senhora, pode vir, pode vir...
Enfadada desliguei o carro que, por acaso, já estava estacionado. Saí, olhei pela primeira vez o dono daquela voz e senti remorsos do enfado.
Velho, talvez tão velho como a terra que o viu nascer, rosto tisnado pelo sol e mapeado pela vida. Olhar azul e meigo, tão fora de propósito com o ar rude da feição.
Dê-me um cigarrinho.
Dou com certeza! 
Era a única maneira que tinha à mão para tentar apagar o remorso, mas tão pouca...
Olhei-lhe e senti-lhe as mãos, grandes, igualmente escuras como o rosto, rugosas e ásperas, fortes como ele, que sim, ele era forte, ainda.
Muitas redes devem ter puxado, muito mar devem ter enfrentado, aquelas mãos.
Ia virar-lhe as costas, quando me tornou a falar.
Dê-me lá fogo! Qualquer dia a gente morre. É o coração. Se ele para a gente morre.
Morre sim, vamos morrer todos. Adeus.
Adeus senhora e obrigado!