sábado, 25 de julho de 2015

À beira da alma semeei caminhos
nem largos, nem estreitos
o que bastasse para serem percorridos,
apenas o que bastasse.
À beira de um beijo disse-te coisas que eu não sabia
disse-te nada e disse-te tudo.
À beira de mim chegou-me um olhar que me deu a mão,
e assim fomos pelos caminhos semeados
ainda por caminhar
ainda por acontecer.


NR
A beira do prédio caía com o peso dos pombos
debruçavam-se nas mágoas dos passantes
e não percebiam.
Não percebiam que a vida não era de voos
que os homens não sabiam voar
e estavam tristes
os homens
encarquilhados no seu medo de aprender a sonhar.
Aos pombos isso não interessava
que as suas asas voavam
acima dos sonhos
dos homens
acima das mágoas
dos homens
acima dos medos
dos homens.
O prédio continuava a sua queda
indiferente
aos pombos e aos homens.
Ao prédio só lhe interessava
não cair.
NR

sexta-feira, 17 de julho de 2015

A barca vogava mansa, saboreando ondas breves, sulcando correntes imaginárias.
Tempestades desenhadas a carvão acalentavam-lhe o tédio.
Da barca ninguém sabia, que ela nunca se tinha dado a conhecer aos homens. Eles nunca iriam perceber o porquê daquelas viagens solitárias, sem barqueiro, e pouco lhe interessava que não percebessem. Era um assunto só dela.
Haveriam de saber quando chegasse o momento, e só nesse momento, o de todas as revelações. Sentiriam o peso das memórias de uma vida passada no desdém, no desamor, no desencanto.
Iriam arrepender-se, mas seria tarde demais.
NR

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Há poemas que nunca serão
há poemas que nunca deveriam ter sido
há poemas que talvez sejam
e se forem, que sejam lidos
que sejam sonhados
que sejam vividos.
Dos poemas fazem-se poetas.
Não, não é engano, que não são os poetas que os inventam
são eles, os poemas, que germinam
as dores
os amores
o querer
o morrer
a vontade
a saudade.
E dão-se à luz pela mão do poeta
mero instrumento do seu querer ser
poema.
E vão-se revelando
subtilmente
alarvemente
despudoradamente
que só assim serão
poemas.
Do poeta nada resta
que o poeta não existe sem o poema.

NR

Quando o primeiro raio de Lua beijar o último raio de Sol,
Quando o último Levante abraçar o primeiro Norte,
Quando tudo for o começar de tudo o que acabou,
Serei o que nunca fui,
Direi o que nunca disse,
E o Eu de mim não me reconhecerá nesse novo ser,
Nesse novo amar.
A minha voz soa oblíqua por entre decibéis nunca ouvidos,
O meu olhar viaja na tua paisagem,
A minha pele respira-te por dentro,
No fundo do teu sabor.
E seremos o que nunca fomos.

NR
ImageShujiro Shimomura
Fui,
ao sabor do que sabe o amor,
no ondular de um espírito inquieto,
no desatino de uma viagem ao acaso,
ao encontro de um furacão erguido em torvelinhos de emoções espasmáticas, incontidas, indomáveis como o são todas as paixões,
como o são todos os amores.
E vou,
e quero continuar a seguir esta viagem com bilhete sem volta,
sem paragens na paisagem,
sem paisagens esbatidas na contra-luz, onde tudo se distorce, onde nada do que parece é,
onde tudo o que parece só é decifrável na linguagem do querer,
na vontade do amor,
no querer continuar a percorrer os oitos infinitos,
até ao fim.
Vai longe a noite
tão longe
tão noite
aquela noite do tudo ou nada
aquele tudo sonhado
em que tudo ficou por sonhar
aquele sonho acordado
sentido
que só de sentidos se fazem sonhos.
E foi aqui que cresceu o sonho
levedado
amado
e é aqui que continua a ser real.
Quadrados de sol que se esgueiram pelas frinchas da janela
que dá para lá do que se vê,
crescentes de lua mansa
como mansas são as mãos de afagar a sede
de te ter
como mansos são os beijos que me vais dando
sem que tos peça
que é desses que falo
só deles.
NR
Foto NR
Voos

A beira do prédio caía com o peso dos pombos
debruçavam-se nas mágoas dos passantes
e não percebiam.
Não percebiam que a vida não era de voos
que os homens não sabiam voar
e estavam tristes
os homens
encarquilhados no seu medo de aprender a sonhar.
Aos pombos isso não interessava
que as suas asas voavam
acima dos sonhos
dos homens
acima das mágoas
dos homens
acima dos medos
dos homens.
O prédio continuava a sua queda
indiferente
aos pombos e aos homens.
Ao prédio só lhe interessava
não cair.

NR


Foto NR

domingo, 14 de junho de 2015

Hoje,
porque é hoje,
quero-te amar outra vez e muitas outras vezes.
Hoje,
porque não é ontem,
vou querer fumar o cigarro depois,
aquele cigarro, até ao fim,
com a sabor a mais.
Hoje,
porque é hoje.



terça-feira, 2 de junho de 2015

Pelos meus passos

Perguntam-me os passos aonde os levo
Que caminhos hão-de percorrer
Porque ventos hão-de esperar
Que pensamentos os irão acompanhar.
Respondem os meus olhos com o horizonte que enxergam
Que só eles sabem, só eles vêem para lá do fim da estrada
Para lá da paisagem por desenhar.
Um dia saberão para onde foram
Que pensamentos os levaram
Que paisagem se desenhou ou do que dela restou,
E hoje não é dia de dar respostas.
Hoje está tudo por acontecer,
Não há ventos, nem pensamentos,
Nem esperanças de futuros, que esses são apenas isso,
Futuros.
Mas há caminhos, sim muitos,
Tantos quantos os passos por dar,
Tantos quanto o desejo de fazer acontecer.
E assim vou,
Passeando pela vida aquecida em banho-Maria no calor das pedras que vou pisando,
Desgastando,
Amolecendo.
Um dia, quando lá chegar,
Hei-de ter mais o que contar.
Nesse dia, que não hoje,
Todos os passos que dei já não serão meus,
Que hão-de vir novos passos,
E hão-de perguntar tudo outra vez.

domingo, 31 de maio de 2015

Outro Começar

Eram macias as tuas mão de sol
eram doces os teus olhos de água
de tudo teu bebeu o meu corpo
de tudo teu se perfumou até ao dia em que deixaste de ser-me.
Levou-te um qualquer levante à boleia do norte,
choveram-me os teus braços num regaço livre, já nu,
completamente nu de ti.
Choraram-se pedras aguçadas num oceano de mágoas,
até se desfazerem os medos de não ter
mais nada,
até se perderem na imensidão de outro ser
maior,
até se encontrarem
num outro começar. 

quarta-feira, 27 de maio de 2015

A última coisa

Espreitava para lá das das nuvens na ânsia de um olhar seu. Um último olhar que fosse, um último sorriso, qualquer coisa, ainda que fosse a última.

Eram densas as nuvens mas no seu íntimo, aquela parte mais escondida de si, sabia que essa qualquer última coisa as conseguiriam atravessar. 

O seu olhar, o seu sorriso, essa qualquer outra coisa, trespassariam quaisquer nuvens, por mais densas ou escuras que fossem.

Aquietou-se. Deixou de espreitar. Algo lhe dizia, para além dos lugares comuns, que se tivesse de ver alguma coisa veria, no momento certo da incerteza que sempre tinha sido a sua vida.

Entre a espera de já nada esperar, ia vendo passar o filme de toda a sua vida. Na verdade nunca esperara nada, nunca tinha precisado de esperar. A vida tinha-lhe caído sempre nas mãos e escorria-lhe, invariavelmente, por entre os dedos demasiado confiantes, naquela certeza estúpida de que seria sempre assim.

E o filme parou, de repente, no momento em que algo fez acordar a sua consciência. Já não havia nuvens, já não havia nada, a não ser o ténue vislumbre do tal último olhar, da tal última qualquer coisa.

Perdera, implacavelmente, o que mais desejara naquele momento. Já não fora a tempo.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

A Besta

Tiras-me o sono
Empestas-me a alma
Vestes-me de negro
E sorris
E festejas
E danças como o ceifeiro quando aprisiona mais uma alma.
E eu deixo que me me violentes

Às vezes
Só às vezes.
Nesses dias visto-me de negro
E acordo as noites só para mim
Porque eu quero
Porque eu também gosto do negro
Porque eu também gosto da noite e da lucidez que me traz
Porque eu também sei sorrir
E festejar
E dançar!
Ai como eu sei dançar
Como me dá prazer ouvir-te gemer de agonia enquanto danço...
Não sabias?

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Aquela noite

Foi como se o céu se abrisse e me escorresse o corpo todo,
naquela noite.
Foi como se todas as estrelas se tivessem apagado e a lua me fizesse esgares da mais pura ironia,
naquela noite.
Naquela noite era só a ti que eu queria,
eras só tu que eu via.
Que me importavam as estrelas, a lua, o universo,
que a mim só me importavas tu.
Perco-me no tempo de outras noites
e desejo-as iguais,
mas naquela noite,
talvez por ser aquela e não outra,
perdi-te no desencanto,
perdi-te no desalento,
perdi-te no céu que se fechou,
naquela noite.




Insónia

Vou-me perdendo na noite pela insónia
Em cigarros fumados pela metade
Em pensamentos enrolados

Entre baforadas de fumo enviesado
Em rascunhos indolentes como a noite que teima em passar
Em folhas de papel amarrotado
Como se tivesse muito que contar...
E a inspiração esvai-se a cada passa do cigarro mal fumado
Intoxicada, arfante, doente
Mas sente que ainda tem tempo
O tempo de todas as noites
O tempo de mais um cigarro
O tempo de mais uma folha de papel
Amarrotado.



Escrevendo-me



Escrevo com os olhos
com a boca
com a alma.
Escrevo em cada passo que dou
a cada compasso de uma música qualquer.
Desenho-te um olhar já baço
de tão brilhante que já foi.
Desenho as linhas da minha mão
como as vi um dia
cruzando as tuas
como as imaginei sempre ali
volteando e tocando-se numa valsa lenta
numa valsa que só elas sabiam.
E assim vou
continuando a escrever-me
a desenhar as linhas da minha mão
agora cruzando-se entre si
dançando sempre ao sabor de outras valsas
ao sabor do tempo que lhes resta
ao sabor do viver e reviver de uma vida só delas.
E escrevo-me
e danço-me
e vivo-me
até que os dias se acabem e que as noites se comecem
até que se embaciem os meus olhos do tanto que já brilharam.

Da Tristeza

Foto de Naná Rebelo.
Tela - Geny Pitta
Terá um rosto, a tristeza?
Terá uma voz, um olhar?
Ouvi dizer que tem suores, que tem temores e tremores.
Diz que se entranha debaixo da pele dos homens e lhes vai comendo a alma,
devagarinho,
saboreando cada pedaço, no vazio de cada espaço que lhe vai deixando.
Depois os homens olham-se por dentro e é aí que reparam que nada são,
já nada serão sem a tristeza.
Vão sentir-lhe a falta autofágica,
vão sentir-se sós na sua miséria de apenas serem homens

que nem à tristeza já podem alimentar.




















Imagem: Sara Morais, 1990. Lisboa

Olhares

Tinha sede no olhar,
aquela sede insaciável, infinita, como infinitas são as sedes de tantos olhares.
Dêem-me de beber que me morre a paisagem,

que me morrem as cores,
que me morro eu!
Mas ninguém ouvia os seus lamentos, que tantos havia a fazer-lhes eco.
Os olhares estavam todos a morrer de sede, todos.
As paisagens e as cores, essas iam-se desvanecendo, até elas próprias se morrerem num suicídio colectivo,
numa morte não assistida,
numa morte que se queria vida.
Assim morrem os olhares,
de sede,
assim morre a vida.