terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Pânico

Foto de Naná Rebelo Detox.Percorre-me o corpo um calafrio de medo
Espasmos de dor numa torrente de calor e frio
Rápidos de um rio que se revolta
Catadupas de suor
Bombos cardíacos em batidas desenfreadas
como se se rasgasse o peito sem anestesia

Respiro fundo
Atento na reverberação das entranhas
Escuto
Aquieto-me
Acalmo o peito na corrida louca do que lhe vai dentro
E seca-se o suor

Destas emoções se vão fazendo os dias
E espero pela próxima revoada
Que não tarda
E preparo a alma para mais uma etapa
De terror
De como quem vê a sombra negra do medo
E nada mais pode fazer
A não ser
Esperar e preparar a próxima espera.
Desenho NR
De tanto mirar a paisagem de sobreiros, saíram-lhe pequenas árvores pelas narinas e pelos cantos da boca.
Tentou falar, mas as raízes abafaram-lhe as cordas vocais, de tão emaranhadas que lhes estavam.


Da escuridão e do que ela encerra

Saiu de casa envolta na escuridão da rua. As luzes tardavam a iluminar a cidade naquela tarde fria de fim de Outono. Eram 6 da tarde e já tão escuro. Ansiava pela Primavera e pela sua cor morna.
Não sabia o que a levava a sair de casa sozinha, sem encontros marcados, mas saía sempre. Talvez porque as paredes do quarto onde morava se estreitavam ao cair do dia. Um dia vão esmagar-me, estas paredes. E saía. Saía sempre àquela hora, quando também os dias ficavam mais estreitos.
Nunca nada era muito diferente naqueles passeios, mas aproveitava-os para dar voltas aos pensamentos.
Essa tarde ia ser diferente. Mais do que apenas passear, apeteceu-lhe oferecer-se um jantar num restaurante e havia de ser num daqueles caros, com vista para o rio, onde os empregados vêm buscar os clientes à porta e os tratam por Dr. Isto, Engº aquilo. Havia de ser num desses. Naquela tarde cedeu ao impulso consumista e mimou-se. Sozinha, mas era um mimo que lhe apetecia, naquela tarde.
Pediu uma mesa à janela para não perder a parte melhor da refeição. A vista sobre a cidade e o rio. Ali podia perder-se nos pensamentos e deixar para trás as paredes do quarto.
Pediu vinho tinto. Só bebia vinho tinto, mas hoje queira um especial. O empregado trouxe-lhe um Dão Reserva e, quase com uma vénia, deitou-lhe uma pequena porção para que degustasse. E esperou, como manda a regra, de garrafa em punho com o rótulo virado para ela, enquanto esperava pelo veredicto. Está muito bem, obrigada, pode servir.
Acendeu um cigarro e sentiu-se importante. Talvez a pessoa mais importante que ali estava, naquela noite. Num relance olhou as pessoas à sua volta. Nos seus passeios diários mal olhava com quem se cruzava, mas ali sentiu curiosidade em observar como se comportavam. A paisagem podia esperar.
À sua frente, uma mesa com um casal jovem. Olhavam-se como se fosse a primeira vez que estavam juntos. Provavelmente era… tímidos, mas cúmplices e apaixonados. Assim parecia.
Lembrou-se da primeira vez que vivera algo semelhante. Tímida, cúmplice e apaixonada. Passavam já largos anos.
Num impulso levantou-se e acercou-se do tal casal. A sua expressão era neutra, sem qualquer tipo de emoção aparente.
Estão apaixonados? O casal olhou-a, estranhamente sem surpresa, e responderam que sim. Estamos, muito.
Então saiam daqui. Vão-se embora. É tudo mentira. O que estão a comer, a paisagem que estão a ver, os olhares que trocam, é tudo ilusão, tudo falso.
A mulher perguntou-lhe, É por isso que está aqui sozinha?
E que outro motivo haveria? Claro que sim!
Voltou à sua mesa, acendeu outro cigarro. O casal desaparecera, como se nunca tivesse estado ali. Pediu a conta e deixou a refeição intacta. O vinho, esse bebeu-o até ao fim da paisagem.
Chegou a casa, depois de bebida toda a paisagem. As paredes do quarto já não estavam tão estreitas quanto as havia deixado, mas ainda havia algo perturbador.
Pensou no Dão Reserva que sorvera até ao fim, pensou na tal paisagem, pensou no casal que, eventualmente, nunca lá tinha estado, naquele restaurante. Pensou. Apenas.
O gato miava como que a reclamar tanto tempo de ausência, mas nada que meia dúzia de afagos e reforço de ração não colmatassem.
Pensou nos livros que tinha por ler à cabeceira. E eram tantos. Tantos que deixara acumular no vazio dos dias... era altura de os resgatar, um a um.
Olhou para cem anos de solidão, mas não era ainda o dia. Solidão era o que já sentia há muito. Solidão de pessoas, solidão de palavras, solidão de mar e de amar. Não era tempo. Não ainda.
Pensou em amor em tempos de cólera. Também não era altura de se rever. 
Em baixo da pilha de livros, uma pontinha sem nome chamou-lhe a atenção. Talvez possa ser esse, talvez...
O Saramago, o José, estava ali, à espera, num ensaio cego a querer ser relido. Entre o filme e o livro e vice-versa, parecia-lhe que a chamava de novo. Talvez fosse esse. Outra vez esse.
O Dão ainda lhe corria nas veias e a paisagem, essa, ficaria sempre acompanhada do tal casal que exalava mentira por todos os poros.
Talvez fosse apenas dormir com o gato enroscado no sovaco, como de costume.
Agastavam-na certos amanheceres sem sol que, invariavelmente, auguravam dias de se perder em memórias inúteis. Nesses dias gostava de escrever. As palavras iam saindo em jorros de tinta, rápidas, muitas vezes sem nexo, misturando as mais variadas emoções. Naquele dia não seriam suficientes para o desabafo que precisava.
Resolveu sair, guiada pelo instinto que já sabia de cor os passos que a haviam de levar à esplanada do costume. O corpo pedia cafeína, como sempre em todas as manhãs. Mesmo que não houvesse sol, o café havia de aquecê-la e animar-lhe o resto do dia.
Passou os olhos pelo jornal e num virar de página pareceu-lhe ver um rosto familiar. Relevou, que afinal ia ali todos os dias e rostos familiares eram quase todos. No entanto, e noutro voltar de página, aquela figura tornou a chamar-lhe a atenção. Não era ali habitual e isso fê-la tornar o olhar mais atento. Sim, era ele, o homem do casal do restaurante. Afinal tinha estado lá. Não era apenas a sua imaginação. Era ele.
Então pensou nas palavras que lhes tinha dirigido, naquela noite, e sentiu-se corar. Não de vergonha mas de espanto. Tinha-lhes dito coisas horríveis e eles pareciam tão apaixonados, naquela noite. Como tinha sido capaz de ter dito aquilo? Mergulhou a cabeça no jornal e desejou ser invisível, com a promessa de que não tornaria a beber vinho do Dão. Só podia ter sido do vinho. Dizem que certas desinibições são causadas por certos teores de álcool… deve ter sido isso, que ela não era dada a certo tipo de abordagens, muito menos a desconhecidos. Agora sim, começava a sentir uma ponta de vergonha e enfiou ainda mais a cabeça no jornal.
Foi então que sentiu alguém aproximar-se e ouviu, num relance, dizerem-lhe quase ao ouvido, - Afinal tinha razão. Era tudo mentira.
Lentamente, levantou os olhos do jornal e olhou para ele, tentando o seu ar mais descomprometido.
- Desculpe?
- Sim, naquele restaurante, não se lembra?
Pensou se haveria de lhe dizer que sim, ou se disfarçaria com um típico «deve estar a fazer confusão, não era eu». Mas também isso ia ser mentira e enfrentou-o olhos nos olhos.
- Sim, lembro-me bem. Lamento que assim fosse.
- Não lamente, estou-lhe grato. Não imagina o quão grato lhe estou. Só me apercebi da mentira quando a vi ir-se embora e dei por mim sozinho, com uma taça de vinho na mão, a olhar para a paisagem. Era Dão Reserva, a propósito.
Pelo menos sabe escolher o vinho, pensou ela enquanto o via afastar-se, sem mais conversa.
Foto NR
De repente as palavra fugiram-lhe...
Tinha dito que lhe apetecia escrever. Rebuscou dentro da mala, mas tudo o que encontrou foi um pacote de lenços de papel; a caneta devia ter ficado por casa, em parte incerta.
Gabava-se de ser organizada dentro da sua desorganização, mas desta vez nem isso lhe valeu.
Pediu uma caneta emprestada e comprou um pequeno bloco de notas. Agora sim, podia escrever!
Duas horas e dois (ou três) cafés depois, continuava a olhar para o bloco, de caneta em punho. Nada. De repente foi como se o mundo tivesse ficado mudo, pelo menos o seu.
Seria da caneta não ser a sua, ou do bloco de notas comprado à pressa na tabacaria da esquina? Devia ser isso. A sua caneta já lhe conhecia as palavras e esta estranhou-a e teimou em ficar muda. Mas não, devia ser do bloco. Era novo em folha e, na pressa, não tivera tempo de o apreciar, de o cheirar, de tocar cada folha e perceber como viravam. O seu já tinha a sua pele em cada canto das folhas e a tinta corria ligeira...
Decidiu esperar, agradeceu a caneta e foi para casa. Havia de arrumar o novo bloco ao pé do outro e das tantas outras folhas à solta, na gaveta da secretária. Noutro dia voltaria lá, com outras ideias, velhas ou novas, e recomeçaria tudo outra vez.

Foto de Naná Rebelo Detox.
Dia cinzento como certas almas
dia que chama ideias de mortes adiadas
dias que vibram como cordas de guitarras afinadas em amor maior.
Dos dias se fazem as noites de claves de sol
que adormecem os sons tangentes de sorrisos envergonhados,
de sorrisos que quiseram ser sóis e luas e ocasos...
Dos sons recolhidos de certas guitarras
aqueço a alma e outros sorrisos mais abertos,
sem a vergonha que foram.
Libertam-me os acordes daquela guitarra despudorada,
daqueles sons quase obscenos,
em tudo o que me fazem sentir livre
outra vez.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

E venho à procura da noite no escuro dos meus olhos
e procuro a paz que me trará nas horas do nunca, onde tudo é possível
e desejo-a agora mais do que alguma vez.
E ela sabe e vem e conforta-me.
Sossega, que te acalento as angústias, que te desperto os sentidos para o invisível, para o mundo onde não há dor, nem mal, nem desamor.
Repara como tudo se apaga quando fechas os olhos, como tudo desperta quando entras em ti.
Repara como tudo ganha forma e sentido no mundo do vazio, como tudo revive como em nenhum outro lugar, como tudo tem outra cor,
repara.

domingo, 28 de janeiro de 2018

Foto de Naná Rebelo Detox.
Não sei fazer poemas que falem de amor
Não sei fazer poemas que escorram das entranhas e se mostrem sem pudor
Não sei fazer poemas de vielas oblíquas e pedras que falem de vidas feitas e desfeitas
Não sei fazer poemas à luz de luas minguantes, nem de ocasos moribundos
Não sei fazer poemas que falem do mar, dos rios, das árvores, de flores despenteadas e sedentas
Não sei fazer poemas de mulheres amarfanhadas em desamor

Não sei fazer poemas...

sábado, 27 de janeiro de 2018

Do cadeado e da sua morte
Foto de Naná Rebelo.Superar, ultrapassar os limites, ser forte, ser mais forte, sorrir, abraçar, amar, amar-se. Estes são os slogans que encontramos ao virar de uma qualquer esquina virtual, no percurso da nossa vida.
É curioso como é fácil banalizar a força interior que cada pessoa possa ter, como se de uma qualquer receita se tratasse. Este é o poder das redes sociais, aquilo que eu chamo o muro das lamentações do século XXI. Um autêntico prêt-a-porter de emoções.
O passar de páginas inteiras com comentários tipo anúncio, do género «se eu não gostar de mim, quem gostará?» ou, «só sabes a força que tens quando mais nada te restar senão ter força». Podia ficar por aqui com um sem número de exemplos semelhantes, mas a redundância não é a minha figura de estilo favorita.
Pergunto-me diversas vezes, o que procuram as pessoas numa rede social? O que as move na decisão de criar uma página pessoal no meio tão inóspito que é a Internet? E digo inóspito porque é minha convicção que o é de facto. A Internet não é o nosso bairro, a nossa escola, a nossa família, os nossos amigos. A Internet é o mundo inteiro, a praça pública da aldeia global, onde todos se podem permitir dizer tudo o que lhes vai na alma, onde todos podem assumir uma qualquer personagem, onde todos podem saber tudo o que cada um quiser mostrar, literalmente, onde todos podem criticar, ser criticados, sem apelo nem agravo, onde espreitam perigos de toda a espécie para os mais incautos. Querem um meio mais inóspito que este? Mas atenção, mea culpa, que eu também faço parte do grupo e gosto!
Voltando à questão, o que as move, o que faz com que exponham a sua vida, por vezes ao mínimo detalhe, num sítio assim?
Lembro-me do tempo sem telemóveis, sem Internet, onde tudo acontecia como e onde tinha de acontecer, sem que o mundo inteiro soubesse. As acções ficavam no seio de quem as praticava.
Nesse tempo corria-se menos, falava-se mais, lia-se mais, escrevia-se mais. E este é o ponto, para mim, fulcral de toda esta conversa. Escrevia-se mais. Escreviam-se cartas, de amor e das outras, escreviam-se postais ilustrados das férias para enviar aos amigos, à família. Também se sentia a solidão, também se escolhia um amigo para desabafar as mágoas, mas, sobretudo, existia uma coisa chamada diário que servia de repositório de emoções, ao mesmo tempo que se descreviam os acontecimentos que as desencadeavam, ou vice-versa.
Eu nunca tive nenhum, embora sempre tivesse esse desejo. Lembro-me de os ver nas montras das papelarias, lindos, maiores ou menores, mas sempre com um cadeado e ficava fascinada. Para mim esse era o grande mistério dos diários: o cadeado! - Porque têm um cadeado, Pai? – Porque ali se escrevem coisas pessoais, coisas que só dizem respeito à pessoa que escreveu e que não se quer que mais ninguém leia.
Naquela altura, a resposta do meu Pai ainda aguçou mais a minha fantasia. Eu tinha de ter um diário. A vida não era fácil e as hipóteses de ter um, daqueles com cadeado, era remota, por isso improvisei. De um caderno escolar novinho em folha, fiz aquele que seria o meu 1º diário. Colori a capa, colei uns bonecos e acrescentei uma fita de ráfia que atava sempre, cuidadosamente, após cada acontecimento que ali descrevia. Era o meu cadeado e eu acreditava que era tão inviolável como os verdadeiros. 
Hoje, sabemos, esse mistério fascinante morreu. Acabaram-se os segredos, tão nossos, acabaram-se os cadeados, improvisados ou não.
Mas aquilo que o meu Pai me disse naquela altura «Porque ali se escrevem coisas pessoais, coisas que só dizem respeito à pessoa que escreveu e que não quer que mais ninguém leia.», nunca me saiu da cabeça. Continuo a tentar perceber porque tudo isso acabou. E vou descobrindo, aos poucos.
Sem querer cair em lugares comuns e psicologia de cordel, acabou do mesmo modo em que as crianças deixaram de brincar na rua com os amigos; já não jogam aos «polícias e ladrões» nem ao berlinde, nem ao peão. Deixaram de esperar que as mães os chamassem para ir lanchar, que depois sempre podiam voltar à brincadeira. Passaram a “barricar-se” nos respectivos quartos a jogar consola e a comer as sandes ao mesmo tempo, atabalhoadamente, para não perderem “vidas” nos jogos. Deixaram de brincar com os amigos de sempre, deixaram de socializar, de dar o 1º beijo às escondidas atrás de um arbusto qualquer.
Começaram a crescer à frente do monitor de um computador, deixaram as consolas e começaram a namorar à distância, que o 1º beijo, esse chegaria de uma qualquer maneira bizarra, sem aquela atracção de antes, mas com a mesma curiosidade do proibido, tantas vezes decepcionante.
Assim têm vindo a crescer várias gerações, que hoje são pais e adoptaram precisamente o mesmo estilo de “convívio”. É o progresso, dizem, fazer o quê? Adapta-te ou morre…
E foram-se perdendo valores, como quem não quer a coisa. Perderam-se os amigos reais e ganharam-se milhares de “amigos” virtuais. Agora contam-se os amigos das redes sociais, quantos mais melhor (?) e diz-se à boca cheia que se é amigo do Brad Pitt ou de uma qualquer outra estrela. E vai-se alimentando assim a auto-estima.
E depois, quando finalmente se desliga o computador, vai-se dormir a pensar em que frase bombástica se há-de iniciar a nova sessão. Ler? Só se for para retirar alguma ideia passível de aprovação no próximo post.
Mas a próxima sessão tem imensos desafios e a adrenalina sobe quando se vão vendo as repercussões que teve o tal post. Afinal não agradou a todos! Agora demos largas à imaginação, ou falta dela, para defender a camisola. E vêm os “gosto disto” e vêm os insultos e lá se foi a glória. Mas há sempre a escapadela de ir ver quem faz anos, de entre as centenas de amigos e dar muitos parabéns a quem não conhecemos de lado nenhum ou, se conhecemos, nem nos lembraríamos, não fora o aviso dos aniversários do dia
Depois vêm as lamentações do que correu mal ou a euforia do que correu bem. E aqui entram os tais “segredos” que outrora estavam bem guardados no tal diário do cadeado.
Agora já não há nada a esconder e também não há o mínimo interesse nisso. Agora queremos que o mundo saiba que afinal já não se está numa relação e que fomos comemorar com pataniscas ao jantar, com a inevitável fotografia do repasto.
Assistem-se aos treinadores de bancada e não é só de futebol que falo. Há especialistas em todos os assuntos. Fazem-se revoluções virtuais, incitam-se as massas, trocam-se insultos da esquerda à direita, criam-se grupos de banalidades e outros de utilidades e assim se vão preenchendo momentos de solidão.
Novembro - 2013
Para o meu Pai

Foto NR
Hoje apetecia-me ser a paleta de um pintor.
Que fosse nascendo de mil cores inventadas no coração
Que fosse dando vida a uma tela colorida
Que tivesse um mar imenso e eu fosse o barco
E eu tivesse velas feitas de amores-perfeitos
E ele pudesse dizer
Eu sonhei, eu criei, eu pintei,
Fui eu que te pintei.
O pintor partiu
Deixou a paleta e as cores
O pincel perdeu a alma
Que era a do pintor
A paleta chorou as cores
Misturaram-se no mar
Os amores-perfeitos deixaram o barco à deriva
Mas ele continuou a sonhar, lá de longe
E a dizer
Continuo a pintar-te
A recriar-te a cada pincelada
E tu serás sempre a minha tela
Com as cores que tu quiseres
Serás o mar onde navego, o meu mar
Mas o barco nunca mais será o mesmo.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Foto de Naná Rebelo Detox.Tiras-me o sono
Empestas-me a alma
Vestes-me de negro

E sorris
E festejas
E danças como o ceifeiro quando aprisiona mais uma alma.
E eu deixo que me me violentes
Às vezes
Só às vezes.
Nesses dias visto-me de negro
E acordo as noites só para mim
Porque eu quero
Porque eu também gosto do negro
Porque eu também gosto da noite e da lucidez que me traz
Porque eu também sei sorrir
E festejar
E dançar!
Ai como eu sei dançar
Como me dá prazer ouvir-te gemer de agonia enquanto danço...
Não sabias?
Trabalho de Ildebranda Martins
Preso, sinto-me preso nesta caverna maldita onde habitam todos os meus demónios, onde me chamam todas as tentações. Tento fugir, escondo-me em vielas obscuras mas sou assediado por outros pequenos demónios, os meus e os outros. Prazeres fugazes fazem-me esquecer a minha caverna por momentos, apenas momentos.
E torno a fugir, mas antes cedo-lhes e digo que é só desta vez. Que sim, como das outras vezes... não vale a pena, não vais conseguir. Somos mais fortes, somos-te, não vez que tu e nós somos um?
E penso que não têm razão, que vou conseguir, que eles estão lá, na caverna, e eu posso sair quando quiser. E saio. Devolvo-me a outros becos e a outros demónios. Saúdam-me, sorriem-me com esgares de vitória e fazem-me feliz, por mais uns momentos. Apenas momentos.
A caverna ficou agora mais longe e penso que desta vez não me enganaram, os demónios. Os meus, que os outros ficaram no beco à espera da recaída. Mas desta vez vai ser diferente, não vou voltar à caverna, nem ao tal beco.


Foi então que percebi que a caverna tem várias caras e os demónios são os mesmos de sempre.
Foto de Naná Rebelo Detox.Murmúrios viscerais soltam-se em gritos,
escorrem das entranhas de um ser aflito
de um ser na eterna busca do ser.
Desgastam-se as lágrimas em falésias de rostos a pique,
desfazem-se na espuma dos dias que correm em rápidos
por entre escolhos de memórias mortas.
Percorrem-se na eterna busca de memórias vivas,
num eterno querer fazer sentido,
num eterno querer ser.
Cerâmica de Jennifer Santos Lã

Em cada esquina deixou promessas de ilusão
sob a luz de candeeiros moribundos
jurou amar até ao fim do amor
jurou que nunca mais partiria
que ficaria sempre ali
debaixo de candeeiros já sem cor
já sem dor
já sem pudor.
Em cada cama onde se deitou
deixou cheiros misturados de paixões havidas
deixou pedaços de vida em cada prega de lençóis amarfanhados
deixou suspiros de prazer
de querer
de bater de corações acelerados
de letargias do fim.
Deixou sempre pedaços de si
no dobrar de cada esquina
debaixo de candeeiros apagados.
E vai deixando
até que já não reste mais que respirar
até que já não tenha mais nada que deixar.

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Foto por Naná Rebelo

Da nudez das palavras
soltam-se letras átonas
em frases sem sujeito nem predicado.
Um dia hão-de juntar-se complementos indirectos
sem lugar nem tempo.
Um dia hão-de vestir-se
novas palavras
hão-de fazer-se
novas frases
hão-de criar-se
novos poemas
e as letras gritarão, enfim, agudas.

Foto de Naná Rebelo.
Foto por Fatinha Afonso

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Cerâmica de Alice Diniz
E do nada as emoções embotam, como se um véu negro descesse sobre elas, sem aviso.
Do véu, e só dele, soltam-se fios que se emaranham
Nascem-lhe braços feitos hidras e as suas cabeças tecem mais véus
e das emoções restam pequenos fantasmas sem paz, emaranhados no limbo agigantado do véu feito caverna sem luz nem cor.
As hidras encontram finalmente o seu ninho e os seus fantasmas
e brincam com eles e incitam-nos à luta.
Mas que luta, se nunca os ensinaram a lutar?
A seu tempo aprenderão, que a história não acaba assim.
Tela de Elena Valsecchi
Despi-me de mim
Desnudei o corpo e a alma
Vagueei por sítios ermos
Encontrei almas antigas
Falei-lhes de mim
Do que não tinha sido, do que não tinha visto
Também lhes falei de tudo o que senti e ainda sentia
E ai como sentia ainda tudo tão presente nesta alma agora nua
E que sofria, que doía, que pedia para esquecer
Esquecer os dias vãos, amnésia de ilusões
Os amores vazios do sentir, do amar, do tocar,
Do respirar o mesmo ar
Pedi-lhes que me secassem de vez as emoções
Que me devolvessem à vida
Assim, estéril de paixões
Seca de ilusões de amar.
Que tinha de esperar outra vida, disseram-me
Que não era ainda, não era agora, não era o tempo,
Que não me tinham chamado ali
Que me fosse para de onde não devia ter saído.
Não fui.
Continuei a procurar outras almas mais antigas
E fiquei perdida no vazio dos tempos
Até me secar, até poder vestir-me de aridez,
Até deixar de sentir, até deixar de existir.

domingo, 21 de janeiro de 2018


Foto de Elena Valsecchi.
Um dia hei-de escrever na alma
as minhas dores
os meus amores
os meus ódios
os meus prazeres
os meus encantos e desencantos
as minhas alegrias
as minhas tristezas
e tudo de mim.
Depois...
pego numa borracha de nada e apago tudo
que haverá outro tempo de reescrever tudo outra vez.
Mas só depois
que agora é tempo de rever a alma que já foi
pensar a alma que será
e ouvir a alma que ainda é.
Depois e só depois...

Tela de Elena Valsecchi

sábado, 20 de janeiro de 2018

Mehrdad ZaeriUm gato no colo que amassa, ronrona, amassa e olha para mim com olhos de gato e refila se me mexo muito.
Sou a poltrona do gato e não é suposto as poltronas mexerem-se. E vai que amassa mais até que encontra o sítio certo para fazer o ninho e os ninhos, esses também se querem quietos. Mas este ninho teima em se mexer.
E os amassos tornam-se mais duros e as unhas espetam-se e quase rompem a poltrona. Param os ronrons, intensificam-se as unhadas e a poltrona revira-se, o gato vai ao chão, o gato volta, a poltrona sossega, voltam os amassos.
Tenho sempre um gato no colo.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018


De longe chegaram-me notícias de quem não conheci
Daí mesmo chegaram estranhas vontades
Apetece-me beijar alguém
Apetece-me beijar-te
Vou-te beijar um dia, vais ver
E quando esse dia chegar
Vais desejar que nunca estivesse perto
Que nunca tivesses sabido de mim
Que me fosse para onde não pudesse ser visto.
Não passo de um fantasma, de uma sombra
De uma criatura da noite
Dessas que nunca dormem
Dessas que miram horizontes fragmentados
Embalados na água de um qualquer rio, de um qualquer mar
Que brilham falsamente à luz de um qualquer luar
Vou-me apaixonar por ti, vais ver
E de ti trarei apenas a tua memória
E de mim terás nada
Que serei apenas uma sombra disforme
Tatuada numa qualquer parede, de uma qualquer rua sem nome.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Foto de Naná Rebelo Detox.Espreitas-me pelo canto do olho
Nunca te mostras inteiro
Despes-me devagar com ganas de me rasgar
Como se eu fosse tua
Como se me quisesses tua
Assim, devagar
Do canto do olho descobres-me
Não me mostras, não te mostras
Não me queres que não te queira
Não me tens que não te tenha
Mas queres e tens e tenho e quero
E temos tudo sem ter nada
Assim, devagar.

terça-feira, 16 de janeiro de 2018


Cansaço, muito cansaço, tanto cansaço
Dias desencontrados
Horas que passam, apenas passam
Dias que antes de começar já acabaram
E o cansaço de viver
E o cansaço de amar e viver sem amor
E ser só uma sombra de mim
Cansaço, só cansaço
E a sombra que se perde de mim
E eu que me perco procurando sombras
E as sombras que me chamam e nenhuma é a minha
Mas querem-me, as sombras
Não, não as quero, aquelas sombras
Quero a minha, preciso dela, é tudo o que tenho
Vejo-a de longe, pintando-se numa parede
Conhece-lhe os contornos
Molda-se, estica-se, escorre
E veio devagar, até mim
Vem que não há tempo, temos de continuar
E resta o cansaço
E recomeça a viagem pelos dias.
Vi um céu cor de manteiga
Vi-lhe rosas e violetas
Vi-lhe uma orgia de cores e um Sol já moribundo
Dissolvi-me no Sol
Misturei-me nas cores
Dançámos, brincámos, gritámos
E o mar ali tão perto a chamar, num murmúrio de desejo
Marulhava-me ao ouvido
Vem que estou só
Vem, preciso de ti
Vem que te quero tanto
E fui diluir-me nele
E ali mesmo nos amámos num frenesim de espuma
Até ao nascer da Lua.
Foto de Naná Rebelo.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Na Minha Pele

Da contra-capa

«E quando achamos que já não temos para dizer, que já tudo foi escrito, que já tudo foi pensado, que já tudo foi sentido, vem a vida e diz que é tempo de recomeços.»

Neste livro podem ser lidos alguns dos poemas que fui sentindo ao longo de um determinado período da minha vida. Um tempo de paixões e descobertas de paixões...
A Causa das Regras (https://www.facebook.com/poesiacausadasregras/) aceitou editá-lo e ajudou a concretizar o meu sonho de poder ter os meus escritos com cheiro a papel. Ah! o cheiro do papel... um dia não passará de uma memória. Ou talvez não, que ainda acredito na teimosia dos autores e de certos editores.

De alguém que leu
«Ler o livro "Na Minha Pele" de Naná Rebelo é entrar num universo místico de palavras e segundos sentidos onde o sonho e a ilusão se confundem com a realidade, profundamente belo e avassalador, os poemas são uma viagem aos recantos mais escuros da nossa alma. Recomendo.»

Nuno Miguel Morais, também ele com poemas a serem lidos em https://blogomundointeiro.blogspot.pt/




Foto de Naná Rebelo Detox.Pediram-lhe poemas de céus cinzentos
negros
mórbidos
como se fossem lápides de campas
sem lágrimas
sem flores
sem mortos.
Pediram-lhe poemas como se poemas se fizessem a pedido
sem alma nem dor
exagues
sem gritos nem cor.
Mas os poemas dela tinham dias de Sol
cantavam alegrias subtis
viviam de prazeres
adormeciam em campos de flores
não queriam saber das suas dores
e não os escreveu, os poemas.
Que a deixassem respirar, só queria que a deixassem respirar.
Amanheceu tarde, que a manhã já não era deste dia
Despiu os sonhos, devagar para que não acordassem
Queria mantê-los até à noite seguinte
Tinham sido bons aqueles sonhos.
Vestiu a vida, mas depressa, que ainda tinha a sua forma 
Era preciso que não a perdesse, a forma do seu corpo
Já viva foi ver outras vidas, lá onde elas costumam estar
Foi olhá-las nos olhos para que não se esquecessem dos seus
Foi olhar outras formas e percebeu que nem todas se ajustavam
Tinham vestido vidas trocadas
Tinham-se enganado no despir dos sonhos
Tinham querido enganar-se
Mas não, que a vida nunca se engana na forma que vai vestir
Mais cedo ou mais tarde voltam a encontrar-se
Na sua forma, que só aquela é a sua.
NR 2014