terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Consciências sem história
As histórias do Pinóquio sempre me aborreceram. Não pelo desgraçado feito em madeira, que até era um personagem simpático e quase parecido comigo, mas...aquela coisa do grilo sempre atrás dele a tolher-lhe as vontades, nunca achei muita piada. Depois pensava, «bom, pelo menos aquela consciência dele, sempre é pequenita, tem mais sorte que eu, que tenho duas consciências enormes sempre atrás de mim a dizer-me o que NÃO posso fazer....»
O Pinóquio tornou-se humano e eu cresci. Finalmente podia largar as minhas consciências, podia partir à aventura, fazer o que me apetecesse.
E apareceram a raposa e o lobo e fui com eles, explorar o mundo.
Depois veio a dúvida, vieram muitas dúvidas e eu resolvia-as, pensava eu. E dei por mim à procura dos grilos, os dois enormes grilos que deixei para trás num dia de Ipiranga desafinado.
Não estavam lá. Fiquei sem chão. E percebi quão parecidas eram as nossas histórias, a minha e a do Pinóquio.
Fotografia Naná Rebelo
Hoje, manhã de Sol, lá estava ela, sossegadinha, esponjada numa folha soalheira a beber cada raio de Sol. Não sei porque parei, mas parei. Como é que aquela criatura diminuta me fez parar?
Acho que me chamou em silêncio e ali ficámos um bom pedaço a conversar uma com a outra. Eu e a minha consciência. Seria?
Na manhã seguinte, passei outra vez e lá estava ela, na mesma folha quentinha, agora um bocadinho mais desbastada, que a fome não perdoa e uma consciência também tem de se alimentar.
Bom dia!!! Já por aqui?
Bom dia pequenita! Sim, hoje amanheci mais cedo.
Estou a ver... a que se deve tal milagre?
Meu Deus, esta verdita anda a querer ler-me os pensamentos e o pior é que a safada consegue... Não sei que lhe responda, se lhe diga a verdade, se lhe conte uma estória.
Escusas de te esforçar, sei muito bem porque viste mais cedo. O brilho dos teus olhos não me engana, nunca me enganou! Mas vá, se não quiseres contar não contes. Mais tarde ou mais cedo hás-de perceber que não vale a pena esconder.
Virou-me as costas e voltou a aninhar-se na folha como que a desafiar-me. Não lhe respondi. Fiquei ali a olhá-la e a invejar-lhe o banho de Sol.
Virou lentamente a cabecita, esfregou as antenas e disse-me que amanhã haveria de voltar, mas que não me admirasse se ela já não estivesse ali. Interroguei-a.
Sim, posso estar noutra folha qualquer, ou posso continuar aqui, não sei. Tudo vai depender da forma como o Sol estiver quando aqui voltares.
Veremos, disse-lhe.

Sim, veremos até quando e até onde te vais conseguir esconder de mim.
Foto de Naná Rebelo.
Fotografia Naná Rebelo
E o mar aqui tão perto, porém tão longe.
Praias de sentir o sol nas veias, na pele,

no sonho de ondas desfeitas em caracóis de espuma
que me percorre o corpo e que não fica,
nunca fica.
Quero o mar, quero sentir areia desfeita, molhada,

que se escorre em mim,
quero o sol que me acaricia por dentro, o meu sol, só meu,
que só ele fica.

Sim, quero amar,
sentir desejo,
quero amor,
quero viver, como se fosse a última vez.
Foto de Naná Rebelo Detox.
Não sei de onde me vem este sentir que me seca, me fere,
me tira de mim o que já não tenho.
Não sei que emoções me chamam onde não me querem
e porque corro atrás delas.
O querer e não querer, do longe que estou
e do perto que me sinto
de onde não me quero.
Quero esvaziar-me deste corpo, quero viver-me livre,
de mim.
Renascer, quero renascer,

recriar-me até que o último esboço deixe de o ser, um esboço de mim.
Não, não quero a obra prima que essa só existe no ideal dos poetas.
Quero ser eu o poeta, o pintor, o escultor e o actor.
Só assim posso ser eu outra vez, como eu quiser.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Foto de Sarapintar.
Desenho de Sara Pestana
Louco
o que vai sem saber para onde
sem saber para quê
sem saber porquê
Mas vai, o Louco
porque é Louco
porque sonha
porque quer
porque não lhe importam as consequências
apenas vai, o Louco.
Não lhe interessam os Hierofantes da vida
não lhe importam Imperadores
nem Magos
nem Papisas.
Encontra Dependurados
que já foram Loucos
Diabos que querem ser Loucos.
Menos lhe importam Enamorados
bafejados por Estrelas
quiçá iluminados por um qualquer Sol desbotado.
Importa-lhe a Força que o deixa passar os guardiões da Lua
essa Lua de mistérios, de segredos...
Na Imperatriz busca o seio que nutre
o útero que lhe deu vida
e vai, em busca do Mundo.
Justiça?
Que Justiça será essa que o fez partir
de calças rasgadas e a vida numa trouxa...
Foto de Sarapintar.
Tela de Sara pestana
Espaços percorridos
Entre artes de tudo e nada
Manchas de cor a querer fazer sentido
E fazem
As manchas
De cor
Que os sentidos ficaram por fazer.
A cor desbotada
A dor do pincel
A cada traço
A cada espaço
E tudo dói
E há espasmos
E mais dores
E mais cores.
E venham mais sonhos
De almas antigas
Que chorem mais cores
Que animem todos os arcos
Um dia chamados íris
Que se inventem novas paisagens
Intocadas
Intocáveis.
Foto de Ildebranda Martins.
Trabalho de Ildebranda Martins
Percorro caminhos sujos de gritos mudos
sujos de opiniões contrárias
mascarrados de sonhos em limbos translucidos
encharcados de chuvas ácidas
manipulados por gente
que não sonha.
E mudo os caminhos
e as opiniões
e os sonhos
e a chuva.
Só não consigo mudar a gente
que não sonha
e dou cor ao limbo
e continuo a sonhar.
Foto de Naná Rebelo Detox.
Desenho de Sara Pestana
Calaste-me as palavras num beijo sem sabor
num beijo a fugir por entre memórias de passados de areia
a escorrer por entre os dedos.
Fala-se de amor com medos de ilusões perdidas,
esquivos e intensos como o mar,
arredios como pássaros sem cor
perdidos numa Primavera que já foi,
na espera de um Verão que não será.
Restam os sonhos de mais ilusões de amar,
de mais beijos com sabor sal,
de corpos que se hão-de procurar numa qualquer duna,
num outro mar.
E hão-de sempre fazer-se novas memórias,
e hão-de voar mais pássaros
e hão-de fugir outros beijos.


In "Na Minha pele" - 2016

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Foto de Naná Rebelo Detox.Um dia,
Um dia, não muito distante
Ou talvez muito
Um dia vou ver as minhas raízes
Um dia vou saber por que caminhos andei

Por que caminhos chorei
Por que caminhos amei.
Um dia,
Um dia, num passado distante
Ou talvez não tanto
Vou perceber porque morrem os seres
Porque choram os seres
Porque se vive depressa demais
Porque se tem de pensar nisto do viver
e morrer.
Um dia,
Já não será preciso pensar
Nestas coisas, que não são coisas,
Apenas são.
Foto de Naná Rebelo Detox.Naquele dia o Sol brilhava menos.
Na caminhada reparou que estava só, que a sua sombra não a seguia. E chorou.
Teve saudades do Sol e da sombra.
Nunca lhe tinha faltado aquela entidade misteriosa que repetia todos os seus movimentos, que a acompanhava para todo o lado.
Não, aquele dia não era como os outros e sentiu a pior das solidões. A sua sombra abandonara-a.
Correu o mais que pode a procura de uma nesga de Sol. Queria ter a certeza, ou se era um engano. Uma espécie de miragem como as que se têm nos desertos, mas ao contrário, que deixamos de ver o que lá está...
Encontrou a nesga de Sol e ficou à espera. Mirando e remirando e viu - a sombra das suas lágrimas.
Devia ser engano, que as lágrimas não têm sombra.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Desenho de Sara Pestana
Fechou as mãos à frente dos olhos,
grandes e negros
coloridos com paletas de cores
muitas cores.

Tudo nela era cor
vinha de dentro
vinha de fora pra dentro
sem pudor da mistura.

Mas os olhos tão negros
num contraste puro
olhavam a cor
bebiam a cor.

Tudo nela tinha cor
até o negro dos seus olhos,
grandes, curiosos,
e tão negros, com tanta cor.

E fez-se tela
nasceu-se tela
do negro dos seus olhos.

sábado, 10 de fevereiro de 2018

Foto de Elena Valsecchi Art.E.
Óleo sobre tela de Elena Valsecchi
Quando passares por mim por entre a maresia
Não me fales
Não olhes para mim
Não te encantes
Não te lembres do quanto já te gostei.
Quando passares por mim por entre a porta que não soubeste fechar
Faz de conta que eu sou a sombra que ficou de permeio
Faz de conta que eu sou a água de um riacho de pedras inquietas
Faz de conta que sou uma nuvem de mil formas
Faz de conta, apenas.
Foto de Naná Rebelo Detox.Vou-me perdendo na noite pela insónia
Em cigarros fumados pela metade
Em pensamentos enrolados em baforadas de fumo enviesado
Em rascunhos indolentes como a noite que teima em passar
Em folhas de papel amarrotado
Como se tivesse muito que contar...
E a inspiração esvai-se a cada passa do cigarro mal fumado
Intoxicada, arfante, doente
Mas sente que ainda tem tempo
O tempo de todas as noites
O tempo de mais um cigarro
O tempo de mais uma folha de papel
Amarrotado.

sábado, 3 de fevereiro de 2018

Foto NR
Sei de um lugar onde as pedras são poetas
fazem rimas com o rolar das marés
fazem poemas areados no debicar de pássaro marinhos
cantam odes ao sol quando nasce
compõem o requiem do ocaso e aquietam-se na espera do luar.
Sei de um lugar onde conheci essas pedras
e com elas fui rimando
delas trouxe musas com sal e penas
por elas tornei a voltar.
Com elas me diluo nas melodias da vazante
até que todas as pedras sejam uma só
até que sol encontre a lua
até que o mar possa cantar todos o poemas
até que os pássaros marinhos os saibam de cor.
Depois, a terra inteira será igual a esse lugar
e tudo será uma imensa melodia

um imenso poema.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018


Quero perder-me numa floresta,
quero abraçar um rio de águas mansas,
quero encontrar-te entre juncos macios e sentir que sempre esiveste ali,
à minha espera.
Não quero que me digas nada,
só quero que me ames
que me abraçes
que me embales,
como se nunca me tivesses visto antes,
como se eu fosse apenas um sussurro ao teu ouvido,
como se nada mais existisse naquela floresta.
Depois, deixamos levar-nos na corrente
e assim iremos, mansamente, docemente,
assim, apenas, que o rio saberá para onde
só ele saberá e nada mais importará,
nunca mais.
Foto de Naná Rebelo Detox.Entre sonhos de noites mal dormidas
Entre névoas de pensamentos disformes
Dissolvem-se emoções
Esmagam-se paixões
Desfaz-se o querer.
Mas não, que não me apetece deixar de sonhar
Contigo.
Anda não quero acordar
Ainda não.
Um dia talvez me perca do teu cheiro
Um dia talvez...
Mas não hoje
Não agora
Não já.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Foto de Elena Valsecchi Art.E.
Tela de Elena Valsecchi
Hoje não me apetece escrever.
Hoje apetece-me viver as palavras escritas em catadupa,
sem pensar,
sem precisar de significados ou significantes.
Hoje apetece-me viver tudo o que possa vir a escrever
antes que fique dito
antes que todos saibam o que ficou por dizer.
Hoje apetece-me fazer escorrer palavras em rios de tinta azul,
que se entrelacem nas margens de folhas douradas,
que se misturem no sentir da corrente,
que não sejam decifráveis,
que desagúem em oceanos de outras palavras não ditas,
que sigam caminhos sem pontuação,
que sejam livres, as palavras.
Hoje não me apetece escrever.
Foto de Naná Rebelo Detox.