domingo, 31 de maio de 2015

Outro Começar

Eram macias as tuas mão de sol
eram doces os teus olhos de água
de tudo teu bebeu o meu corpo
de tudo teu se perfumou até ao dia em que deixaste de ser-me.
Levou-te um qualquer levante à boleia do norte,
choveram-me os teus braços num regaço livre, já nu,
completamente nu de ti.
Choraram-se pedras aguçadas num oceano de mágoas,
até se desfazerem os medos de não ter
mais nada,
até se perderem na imensidão de outro ser
maior,
até se encontrarem
num outro começar. 

quarta-feira, 27 de maio de 2015

A última coisa

Espreitava para lá das das nuvens na ânsia de um olhar seu. Um último olhar que fosse, um último sorriso, qualquer coisa, ainda que fosse a última.

Eram densas as nuvens mas no seu íntimo, aquela parte mais escondida de si, sabia que essa qualquer última coisa as conseguiriam atravessar. 

O seu olhar, o seu sorriso, essa qualquer outra coisa, trespassariam quaisquer nuvens, por mais densas ou escuras que fossem.

Aquietou-se. Deixou de espreitar. Algo lhe dizia, para além dos lugares comuns, que se tivesse de ver alguma coisa veria, no momento certo da incerteza que sempre tinha sido a sua vida.

Entre a espera de já nada esperar, ia vendo passar o filme de toda a sua vida. Na verdade nunca esperara nada, nunca tinha precisado de esperar. A vida tinha-lhe caído sempre nas mãos e escorria-lhe, invariavelmente, por entre os dedos demasiado confiantes, naquela certeza estúpida de que seria sempre assim.

E o filme parou, de repente, no momento em que algo fez acordar a sua consciência. Já não havia nuvens, já não havia nada, a não ser o ténue vislumbre do tal último olhar, da tal última qualquer coisa.

Perdera, implacavelmente, o que mais desejara naquele momento. Já não fora a tempo.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

A Besta

Tiras-me o sono
Empestas-me a alma
Vestes-me de negro
E sorris
E festejas
E danças como o ceifeiro quando aprisiona mais uma alma.
E eu deixo que me me violentes

Às vezes
Só às vezes.
Nesses dias visto-me de negro
E acordo as noites só para mim
Porque eu quero
Porque eu também gosto do negro
Porque eu também gosto da noite e da lucidez que me traz
Porque eu também sei sorrir
E festejar
E dançar!
Ai como eu sei dançar
Como me dá prazer ouvir-te gemer de agonia enquanto danço...
Não sabias?

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Aquela noite

Foi como se o céu se abrisse e me escorresse o corpo todo,
naquela noite.
Foi como se todas as estrelas se tivessem apagado e a lua me fizesse esgares da mais pura ironia,
naquela noite.
Naquela noite era só a ti que eu queria,
eras só tu que eu via.
Que me importavam as estrelas, a lua, o universo,
que a mim só me importavas tu.
Perco-me no tempo de outras noites
e desejo-as iguais,
mas naquela noite,
talvez por ser aquela e não outra,
perdi-te no desencanto,
perdi-te no desalento,
perdi-te no céu que se fechou,
naquela noite.




Insónia

Vou-me perdendo na noite pela insónia
Em cigarros fumados pela metade
Em pensamentos enrolados

Entre baforadas de fumo enviesado
Em rascunhos indolentes como a noite que teima em passar
Em folhas de papel amarrotado
Como se tivesse muito que contar...
E a inspiração esvai-se a cada passa do cigarro mal fumado
Intoxicada, arfante, doente
Mas sente que ainda tem tempo
O tempo de todas as noites
O tempo de mais um cigarro
O tempo de mais uma folha de papel
Amarrotado.



Escrevendo-me



Escrevo com os olhos
com a boca
com a alma.
Escrevo em cada passo que dou
a cada compasso de uma música qualquer.
Desenho-te um olhar já baço
de tão brilhante que já foi.
Desenho as linhas da minha mão
como as vi um dia
cruzando as tuas
como as imaginei sempre ali
volteando e tocando-se numa valsa lenta
numa valsa que só elas sabiam.
E assim vou
continuando a escrever-me
a desenhar as linhas da minha mão
agora cruzando-se entre si
dançando sempre ao sabor de outras valsas
ao sabor do tempo que lhes resta
ao sabor do viver e reviver de uma vida só delas.
E escrevo-me
e danço-me
e vivo-me
até que os dias se acabem e que as noites se comecem
até que se embaciem os meus olhos do tanto que já brilharam.

Da Tristeza

Foto de Naná Rebelo.
Tela - Geny Pitta
Terá um rosto, a tristeza?
Terá uma voz, um olhar?
Ouvi dizer que tem suores, que tem temores e tremores.
Diz que se entranha debaixo da pele dos homens e lhes vai comendo a alma,
devagarinho,
saboreando cada pedaço, no vazio de cada espaço que lhe vai deixando.
Depois os homens olham-se por dentro e é aí que reparam que nada são,
já nada serão sem a tristeza.
Vão sentir-lhe a falta autofágica,
vão sentir-se sós na sua miséria de apenas serem homens

que nem à tristeza já podem alimentar.




















Imagem: Sara Morais, 1990. Lisboa

Olhares

Tinha sede no olhar,
aquela sede insaciável, infinita, como infinitas são as sedes de tantos olhares.
Dêem-me de beber que me morre a paisagem,

que me morrem as cores,
que me morro eu!
Mas ninguém ouvia os seus lamentos, que tantos havia a fazer-lhes eco.
Os olhares estavam todos a morrer de sede, todos.
As paisagens e as cores, essas iam-se desvanecendo, até elas próprias se morrerem num suicídio colectivo,
numa morte não assistida,
numa morte que se queria vida.
Assim morrem os olhares,
de sede,
assim morre a vida.