sexta-feira, 27 de abril de 2018

Foto de Sarapintar.
Tela - Sara Pestana
Pudesse eu ter-te agora aqui
pudesse eu ver-te
pudesse eu sentir-te como se fosses uma brisa feita vendaval
que me despenteasses
que me despertasses do marasmo da bonança
da quietude estéril de apenas ser.
Pudessem as águas de todos os rios se despenhar em cascatas aguçadas
e as pedras te gritassem vem,
anda ver no que me tornaste,
anda ver como te anseio na corrente dos rápidos
como me quero diluir na espuma de todos os redemoinhos
e desfazer-me na limpidez do lago onde toda a fúria dos elementos se aquieta, por fim...
Depois ficaríamos ali, a flutuar no espelho da transparência que fomos, um dia.
Foto de Naná Rebelo Detox.Hoje não quero sonhar, não quero escrever, não quero amar.
Hoje quero ser a outra que nunca fui,
a outra que não conheci,
a outra, apenas.
Hoje quero desfazer-me de mim,
quero desconstruir-me
ficar irreconhecível
e que nenhum espelho me devolva, não quero.
Hoje quero adormecer,
apenas adormecer e dormir,
apenas dormir, como se morresse,
como se nada nunca tivesse existido,
como se eu nunca tivesse existido,
como se nunca mais fosse
eu.

segunda-feira, 16 de abril de 2018

Foto de Geny Pitta.
Tela de Geny Pitta
Saudades, sim tenho saudades,
saudades de tudo, saudades de nada.
Saudades do tempo que passa sem pedir licença,
saudades de alguém que me diga amo-te, com toda a força do seu ser,
sim, muitas, tantas.
Qual é o tamanho da saudade?
É do tamanho das lágrimas que se choram e vão inundando o presente do sentir,
é do tamanho dos meus olhos quando te procuram e não estás,
é do tamanho dos abraços que me vais dar num dia sem saudade.
A saudade é do meu tamanho, apenas do meu tamanho.

quarta-feira, 4 de abril de 2018

Tela de Carlos Saramago
Raízes de mim que misturo nas tuas raízes
as que vão ao fundo do ser, que não se deixam tocar
raízes que sabem de nós
que sabem de tudo o que é vivo.
Ali estavas, serena,

como se já soubesses que te iria procurar
ali me esperaste e me abraçaste
braços fortes, porém tão meigos,
ramos sábios de tudo, tão férteis de amor.
De ti fui buscar mais força,
de mim não buscaste nada
que de nada precisavas
a não ser do meu amor.

domingo, 1 de abril de 2018

Foto de Naná Rebelo.
Fotografia - Fatinha Afonso
E o fresco da noite entrou-me pele adentro como se fosse sua,
como se tudo pudesse, como se eu deixasse.
E eu deixei, como se nada mais houvesse que se apoderasse de mim,
naquela noite,
e deixei-me levar, porque nada mais havia, a não ser o fresco e a noite.
E caminhei, caminhei sempre, até que me senti,
até que senti duas, só duas, grossas lágrimas a quererem escorrer-me na face
devagar
como que a querer que as bebesse
devagar
como que a querer que as saboreasse
como se nunca as tinha saboreado
essas duas lágrimas, só duas.
mas tão minhas, só minhas.
E foram rolando,
devagar,
sem pressa,
sem paixão,
mas com tudo o que a alma, e só a alma, tem para sentir
em forma de lágrima.
E que salgadas as senti quando me tocaram os lábios,
quando as lambi para que não me fugissem,
aquelas lágrimas.
Eram de mim e a mim tinham de tornar
que não queria que se perdessem num qualquer chão que não fosse meu,

E assim foi, no fresco da noite, que só ele sabia daquelas lágrimas.

domingo, 25 de março de 2018

Foto de Elena Valsecchi Art.E.
Tela de Elena Valsecchi
Numa corda bamba de sentimentos

com cheiro a pele suada de amores

num deslizar suave por tanto querer

por tanto amar

no querer escorregar mesmo sabendo que pode não haver rede.

Vem a vida e diz que sim,


que só assim saberás o que te espera

depois da espera

depois da queda


depois do fim.


E atiras-te


e deixas-te voar


e continuas a amar.


E cais


e continuas a sonhar.



~In Na Minha Pele, 2016~

quinta-feira, 22 de março de 2018

Tela de Armanda Alves
Passavam por mim, acotovelavam-se no querer chegar a lado nenhum, que era esse o único lugar onde estavam todos os que não se queriam ver.
Alguns olhares vagos, outros vazios de desejo, de querer. A única coisa que queriam era chegar, apenas chegar.
As garrafas já vazias iam marcando territórios, assinalavam o caminho para lado nenhum, para o sítio de um êxtase sem sabor, sem desejo, sem paixão. E continuavam a marcha, uns atrás dos outros, que alguém havia de saber o caminho.
Era assim que passavam a noite, de olhares vagos, corpos flácidos, ombros descaídos, seguindo garrafas vazias, sempre em busca do tal caminho para lugar nenhum.

Era assim que se transformava a cidade, numa noite de busca de paixões inexistentes no fundo de garrafas vazias, como vazias se tinham tornado as suas vidas.
A cidade está cinzenta, chuvosa, triste como as almas que nela vagueiam.
O frio entranha-se em cada pedra, em cada passo dado sem destino. Clama por calmaria, pede que a deixem reviver a Primavera dos passos suaves de pessoas com sorrisos de flores e cores, muitas cores.
A cidade não dorme, a cidade já não é o destino. Espera por novos cheiros, novas vidas.

A cidade perdeu a cor, mas sabe de cor o seu reviver.